Carção, uma pequena povoação do concelho de Vimioso, é conhecida como a “Capital do Marranismo”. Começou a desenvolver-se e a ganhar mais importância após o século XV, quando inúmeros descendentes de judeus se refugiaram na freguesia e noutras localidades raianas do município.
A sua maior importância e desenvolvimento deu-se após o século XV, quando muitos descendentes de judeus se refugiaram na localidade e outras aldeias raianas (Carção, Argozelo, Vimioso, Campo de Víboras), dedicando-se sobretudo ao curtimento de peles, indústrias de cola e comércio. Seus habitantes sempre tiveram arte e engenho para fazer face ao isolamento da terra e sair a mercadejar por toda a parte. Há cerca de um século, o Abade de Baçal refere: “Percorrem o distrito de Bragança com venda ambulante de bacalhau, arroz, azeite e outros géneros, comprando, ao mesmo tempo, peles ovinas, bovinas e caprinas”.
O que também surpreende neste povoado, é a forte convicção religiosa na Lei de Moisés, conseguindo manter essa herança judaica, em segredo, por mais de 400 anos, após serem obrigados a converterem-se ao cristianismo. Foi uma aldeia muito fustigada pela Inquisição, desde metade do século XVII, sabendo-se que o Tribunal do Santo Ofício abriu processos a 228 moradores, quase todos eles acusados de heresia (respeitar o sábado, jejuar no Kipur, participar em práticas judaicas mortuárias, missas secas…) muito dos quais acabando por ser queimados nas fogueiras dos Autos-de-Fé realizados no Terreiro de São Miguel, em Coimbra.
O período, provavelmente o mais negro da comunidade, foi entre 1691 a 1701, considerando-se um massacre da comunidade, com a prisão de pelo menos 130 cristãos-novos, muitos dos quais mortos. Houve Autos-de-Fé em que metade dos penitenciados eram desta localidade, como sucedeu no de 17-10-1694, onde 25 dos 56 penitenciados eram de Carção. Também a 25-11-1696, dos 88 penitenciados, 43 eram de Carção, dos quais 12 foram relaxados em carne. Este ataque a Carção foi de tal forma violento, que o Padre António Vieira (1608- 1697) refere que esta devia ser uma das comunidades quase exclusivamente constituídas por cristãos-novos (descendentes dos judeus convertidos à força em 1497). Contudo, apesar desta tremenda devastação, a comunidade revelou uma extraordinária capacidade de resistência à Inquisição, chegando a roubar, das paredes da igreja matriz, os sambenitos dos condenados à morte pela Inquisição (em 1737), que este tribunal ali mandou pendurar para exemplo. Sabe-se que, no século XVIII, chegaram a estar expostos 35 sambenitos.
Já no século XIX, as autoridades católicas davam conta de como a pratica judaica florescia, após abolição da inquisição, como é testemunhado pelo pároco de Carção em carta de 2-6-1852, para o bispo de Bragança: “Neste povo grassa desde tempo imemorial uma seita que em tempo da Inquisição era muito oculto, mas de 34 (1834) a esta parte é isso muito divulgado, quero dizer que não se escondem os sectários como outrora; assim há muita gente, que pelo menos in confuso sabem disso… O erro é a seita, ou Lei de Moisés.”
Nesta identidade religiosa marrana que foi evoluindo ao longo dos séculos, escondida em virtude da perseguição, há a memória e a descrição de cerimónias religiosas que celebravam em casas particulares e na capela de Santo Estêvão (fundada em 1661 por 9 cristãos novos) a que davam o nome de missas secas, ou de como celebravam a festa do Kipur com uma romagem para os vinhedos (testemunhado ainda pelo etnólogo Abade de Baçal nos anos 20 dos Século XX, bem como outros cultos).
Passados 500 anos sobre a expulsão e posteriormente conversão forçada, continuam a ser muitos os vestígios desta comunidade.
A população constrói o Museu Marrano, em homenagem a toda a comunidade, onde podemos ver alguma dessa herança, tais como vários cruciformes, passeriformes, o Leão de Judá, o memorial às 228 pessoas vítimas da inquisição, algumas orações ditas no Século XVII, o Agus Dei com símbolos judaicos numa das faces, considerada por muitos a “Joia do Marranismo em Portugal”. Muito recentemente, no centro da Praça, foi erguido também um monumento, uma grande Menorah para assinalar essa forte e importante presença judaica.
Devido a alguns dos factos históricos e físicos aqui descritos, hoje, Carção é tida como “A Capital do Marranismo” e a comprová-lo está o livro escrito por António J. Andrade e Maia Fernanda Guimarães, 2008.