A PRESENÇA JUDAICA NO CONCELHO DE MOGADOURO – PATRIMÓNIO E MEMÓRIA

A PRESENÇA JUDAICA NO CONCELHO DE MOGADOURO – PATRIMÓNIO E MEMÓRIA

Por Antero Neto

Antero Neto, investigador e autor das obras “Marcas Arquitectónicas Judaicas e Vítimas da Inquisição no Concelho de Mogadouro. D. Luis Carvajal Y De La Cueva” e “Vilarinho dos Galegos e os Seus Mascarados”, leva-nos numa viagem por Mogadouro, onde nos mostra vestígios e dá a conhecer factos relacionados com a presença de judeus no concelho.

OS JUDEUS E A INQUISIÇÃO NO DISTRITO DE BRAGANÇA

As notícias da presença dos judeus em solo ibérico chegam-nos com o registo da perseguição que foram alvo no longínquo ano de 418. Mais tarde, por força dos diversos episódios de expulsão de que foram vítimas em território espanhol, haveriam de migrar em força para solo lusitano, onde muitos se estabeleceram, embora forçados à conversão à religião cristã. O culminar desse processo deu-se no reinado de D. Manuel I, que originou a fuga de muitos, mas que igualmente proporcionou a estadia a outros tantos, que sacrificaram a sua crença em troca da vida. Cristãos-novos, marranos, cripto-judeus ou gente da nação, são as designações por que passaram a ser conhecidos nos anais da História esses judeus convertidos ao catolicismo, mas que, em grande parte, continuaram a praticar a religião judaica de forma oculta, em círculos familiares e privados, transmitindo as orações de geração em geração, conforme o atesta a presença de comunidades um pouco por todo o interior raiano, nomeadamente em Vilarinho dos Galegos, no concelho de Mogadouro.

JUDEUS EM MOGADOURO

O concelho de Mogadouro foi um dos pontos de atração e fixação de judeus em território nacional. A primeira notícia escrita da presença de judeus no concelho de Mogadouro surge-nos no foral atribuído por D. Sancho I a Penas Róias, em 1187:

“Et de gens hebrea qui ibi ocurrerit et ibi feritus fuerit aut occisus tale calumpnia pariant pro illo quomodo pro vosmetipsos” (E de gente hebreia que aí ocorrer e aí for ferida ou morta paguem tal coima por isso como vós mesmos).

Na prática, este pequeno trecho é de extrema importância, pois por aqui se vê como o rei equipara a condição dos judeus à dos moradores cristãos, concedendo-lhes iguais privilégios em matéria de proteção penal. Estamos, pois, na presença de um documento que, além da notícia da existência de gente da nação no território do atual concelho de Mogadouro, prova a preocupação régia com o incentivo ao seu estabelecimento através da criação de normas especificamente dirigidas para a sua proteção.

Segundo José Mota, em “Os Judeus e a Inquisição no Distrito de Bragança”, também no mesmo distrito, “no início da nacionalidade, começou por haver duas comunas de certa importância, a de Bragança e a de Mogadouro, para, mais tarde, esse número aumentar para dez: (onde se incluíam as de) Azinhoso, Mogadouro (e) Bemposta”.

Como podemos ver, o atual concelho de Mogadouro era povoado por uma considerável comunidade judaica, que traduzia a sua presença em três comunas. Ainda a este propósito, Casimiro Machado, em “Mogadouro, Um Olhar Sobre o Passado”, relatou que vinham mencionadas no “Livro das tenças de el Rei” as comunas de Mogadouro e Bemposta, ambas pertencentes à comarca e rabinato de Torre de Moncorvo, completando a referência com a transcrição textual: “A Alvaro Pirez de Tavora a tença gerall pela Judiaria de Mogadouro… a Fernam Vaaz de sampayo, enquanto for mercee delRei… e a elle mais nas gereaes pela Judiaria de Bemposta”.

José Leite de Vasconcelos dá-nos notícia de que no reinado de D. Dinis (1279-1325) havia comuna em Mogadouro igualmente no de D. Afonso V (1438-1481) e no reinado de D. João II (1481-1495) já menciona a de Bemposta. Maria José Ferro Tavares, no volume um de “Os Judeus em Portugal no século XV”, diz-nos que a comuna de Mogadouro estava obrigada a entregar ao rei 160 libras, que no início do século XV viviam aqui 20 famílias de judeus e que, em 1481, obtiveram permissão de D. Afonso V para aumentar a sinagoga. Em relação à existência da sinagoga em Mogadouro, há ainda uma outra referência feita por António Júlio Andrade e Maria Fernanda Guimarães, na obra “Percursos de Gaspar Lopes Pereira e Francisco Lopes Pereira, Dois Cristãos-Novos de Mogadouro”, num pequeno estudo dedicado à vítima da Inquisição Ana Fernandes, ou Ana Doce, como era popularmente conhecida, e que tem por fonte o processo n.º 4637, de Afonso Garcia, marido da dita (Inquisição de Évora). Segundo os referidos autores, em pleno séc. XVI, “em Mogadouro, os cristãos-novos costumavam juntar-se em sinagoga na casa de Francisco Vaz, que tinha uma torah, a bíblia dos judeus. Era aí que Mestre Valença explicava as escrituras sagradas e ensinava a religião de Moisés”.

Em Mogadouro, tal como por todo o país, havia judeus de várias condições económicas, sendo alguns deles ricos e poderosos. Sinal disso mesmo é o facto de em 1383 o Rabi Santo, judeu de Mogadouro, ter arrematado ao rei D. Fernando, por vinte mil e duzentas libras, a cobrança das sisas gerais de um soldo o almude de vinho das comarcas de Entre Douro e Tâmega e Trás-os-Montes. Alguns deles ocuparam lugares de destaque no panorama social mogadourense. Como foi o caso de Mestre António de Valência, físico, originário de Castela, que foi médico dos Távora e casou uma filha, Maria de Valência, com Francisco Vaz Pinto, da casa dos senhores de Murça, ou de Pero Gonçalves, cristão-novo e oficial de bestas, que, em 1642, viu a Câmara de Mogadouro conceder-lhe o privilégio de besteiro exclusivo no concelho.

Berta Afonso diz-nos, em “Para o estudo dos judeus no Nordeste Transmontano”, que “as actividades dominantes dos marranos mogadourenses eram o comércio e o artesanato, complementado pela exploração agrícola. Possuíam bens fundiários, próprios ou arrendados, a ponto de alguns deles terem, em determinado momento, optado pela agricultura”.

O CASO PARTICULAR DE VILARINHO DOS GALEGOS

Vilarinho é terra de judeus. O povo assinala esse facto nas nomeadas colocadas aos naturais das diferentes aldeias, conforme salienta José Leite de Vasconcelos, citando Casimiro Machado:

Casqueirinhos são os de Tó,
Os Judeus de Vilarinho;
Descalços, Vila dos Sinos,
E Serranos de Bruçó.”

O mesmo autor nota que lhe disseram que na aldeia, à época, não haveria mais do que seis famílias católicas. Ainda a este propósito, Trindade Coelho escreveu, em “O Senhor Sete”, que perto da terra dele, “Vilarinho dos Galegos é a terra de melhor fumeiro. Casa de ferreiro espeto de pau: Vilarinho dos Galegos é quase tudo terra de judeus!”

A comunidade marrana de Vilarinho dos Galegos foi alvo de diversos estudos e é muito mencionada nos mais variados trabalhos que versam sobre cristãos-novos em Portugal. Desde Amílcar Paulo, passando por Casimiro Machado, Leite Vasconcelos, Pimenta de Castro, et alia, muitos foram os que se deixaram fascinar por tamanha vontade de sobrevivência. Conseguiu preservar-se até aos dias de hoje, embora se diga que a última rezadeira local foi Olívia Rodrigues, também conhecida por Olívia “Tabaco”. Os costumes e as orações foram passando de geração em geração, guardados em segredo, longe dos olhos e ouvidos indiscretos dos “chuços”. Os casamentos endogâmicos e o isolamento da região ajudam a explicar, em parte, este fenómeno, que foi alvo de um estudo científico levado a cabo pelo Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto. Numa aldeia aparentemente simples, chegaram a coexistir 23 espaços comerciais!

Ainda a propósito, leia-se também este texto da autoria de Carlos Baptista, publicado na página web da Comunidade Judaica Masorti de Lisboa: “se Vilarinho dos Galegos, integrada no concelho de Mogadouro, poderá não ser uma exclusividade histórica, pelo menos é, sem dúvida, um dos marcos da perseverança e da tenacidade dos “anussim” em Portugal. Possuidores de tradições e de ritos mais ou menos secretos, eles continuam a perpetuar um pouco a alma e a herança do povo de Israel em terras de “Sefarad”.

A preservação do património local é essencial para manter vivas a identidade, a história e a cultura de uma comunidade. O legado judaico no concelho de Mogadouro faz parte da nossa memória coletiva e é um elemento do qual nos orgulhamos, e que queremos recuperar para as gerações futuras. A divulgação das marcas do judaísmo nas nossas aldeias é muito importante para a sua valorização e salvaguarda, no sentido em que é preciso reconhecer o potencial e a riqueza inerente a este elemento histórico e cultural para poder implementar um plano eficaz para sua preservação. O objetivo da Câmara Municipal de Mogadouro é estruturar um plano de visitação e aprendizagem da herança judaica no concelho, que beneficie tanto os habitantes locais quanto os visitantes, contribuindo para a educação, o crescimento económico, a diversidade cultural e a qualidade de vida. Por outro lado, também penso que este património ajuda a lembrar os desafios superados e as conquistas alcançadas pelo povo judeu. Manter registos e monumentos locais é fundamental para garantir que as lições do passado não se percam.

António Joaquim Pimentel – Presidente da Câmara Municipal de Mogadouro

PATRIMÓNIO – AS MARCAS ARQUITETÓNICAS JUDAICAS

Embora esta temática não seja pacífica entre os estudiosos do fenómeno judaico, começam a surgir, principalmente nas Beiras, alguns trabalhos científicos dedicados a assinalar como marcas do judaísmo determinadas características arquitetónicas dos edifícios. No concelho de Mogadouro, nomeadamente nas localidades com marcante presença judaica, é possível observar as seguintes marcas:

– Cruciformes

Segundo a tradição oral beirã, os judeus colocavam os cruciformes nas casas para manifestar a sua conversão ao cristianismo e, desse modo, minimizar as perseguições de que eram alvo por parte das autoridades cristãs, reforçando perante a comunidade a sua conversão aos valores religiosos predominantes. Normalmente, este tipo de marcas surge ligado ao espaço conotado com as antigas judiarias ou ruas fortemente habitadas por judeus.

– Ombreiras desgastadas

Este traço arquitetónico observa-se com grande abundância em todos os núcleos urbanos tradicionalmente associados aos judeus. Trata-se de um desgaste na ombreira da porta, típico do afiar de instrumentos de corte. Tal costume assentava na sacralização do instrumento antes do seu uso na degola dos animais, pois a porta é um local sagrado da casa. Segundo depoimentos colhidos em Vilarinho dos Galegos, era assim que igualmente se dava a conhecer aos visitantes que ali habitavam crentes do judaísmo.

– Ombreiras biseladas

De acordo com Berta Afonso, as casas em que as ombreiras surgem cortadas a 45º em bisel, segundo a tradição oral, eram de judeus. Tratava-se de igualmente assinalar simbolicamente a adesão a esse culto através do local mais sagrado da casa.

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