A presença judaica em Portugal faz-se sentir por cidades, vilas e aldeias, um pouco por todo o país. Em Leiria, o legado judaico pode ser interpretado na Casa dos Pintores e na Igreja da Misericórdia, constituindo assim o Centro de Diálogo Intercultural da cidade.
“A presença de judeus em Leiria atesta-se já antes de 1219”, escreve o investigador Luís Urbano Afonso, data em que aparecem referências a Jucefe de Leirena, enquanto testemunha de uma venda. “A judiaria local fixou-se a sudeste das muralhas da vila acastelada, no rossio próximo do rio”, prossegue.
De acordo com Acácio de Sousa, a Segunda Guerra Mundial fez com que diversas famílias judias do centro da Europa abandonassem os respetivos países e procurassem refúgio em Portugal. Na época, Salazar autorizou a permanência temporária desta população, embora fosse “com apertado controlo de circulação”. No distrito de Leiria, Caldas da Rainha, cidade “bem servida pela ferrovia e com boas condições de alojamento, recebeu famílias com hábitos urbanos diferentes dos tradicionais portugueses”.
Na realidade, segundo o historiador, os contrastes em relação aos locais eram bastante evidentes. Foi tanta a estranheza como a recetividade e ainda hoje há caldenses que se lembram dos ares de novidade trazidos por quem fugia da perseguição na Europa. Os sobreviventes dessas famílias, bem como os seus descendentes, deixaram memórias do caloroso acolhimento que ali tinham recebido. Embora muitos tenham partido, alguns estabeleceram-se, com uma segunda geração a frequentar o Liceu de Leiria.
Conforme profere o Professor Saul António Gomes, entre os judeus que escolheram este município para habitar, já nos inícios do século XIII, encontravam-se indivíduos provenientes de outras vilas e cidades portuguesas.
De acordo com José Marques Cruz, dos Judeus Sefardistas “veio-nos o uso das chanfanas, das empadas de ‘roupa-velha’ e dos escabeches. Também o horror ao malpassado, ao sangue visível nos alimentos, faz parte desta herança”.
Um município carregado de história
A Santa Casa da Misericórdia de Leiria foi fundada em 1544 e Luís Urbano Afonso lembra que há relatos locais desde os inícios do século XVII sugerindo que a igreja desta instituição assistencial foi construída no local da antiga sinagoga de Leiria. Em 1497, os bens judaicos, incluindo sinagogas, foram confiscados pela Coroa, deixando a possibilidade de a Sinagoga de Leiria estar devoluta ou com uma ocupação civil. Documentos dos primórdios do século XVI indicam considerações sobre como transferir para a antiga sinagoga o celeiro mantido pelo mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, em Leiria.
A primeira igreja da Misericórdia foi construída pouco após 1544 sobre a antiga sinagoga, refletindo a vontade das autoridades de eliminar vestígios judaicos e supervisionar as práticas religiosas dos cristãos-novos na mesma área onde a judiaria estava localizada. A construção também reorganizou o mapa religioso, especialmente após Leiria se tornar uma diocese, logo no ano seguinte, em 1545.
A facilidade com que a igreja de S. Martinho foi demolida permitiu ampliar a principal praça da cidade, transferindo funções para a igreja da Misericórdia. “Como esta demolição foi realizada entre 1549 e 1553, é provável que a igreja da Misericórdia estivesse operacional pelo menos desde 1548”. No final do século XVI, habitações foram adquiridas perto da igreja para expandir o hospital da Santa Casa, substituindo a pequena enfermaria existente, “que funcionava numa única câmara junto à cabeceira da igreja”.
Por volta dos primórdios de 1600, o bispo D. Martim Afonso Mexia realizou melhorias na igreja, incluindo a instalação de um púlpito e colunatas de sustentação do coro alto. Durante as invasões francesas, o arquivo da Misericórdia foi destruído, deixando lacunas na compreensão das origens e construções subsequentes. “Para todos os efeitos, o certo é que hoje em dia o edifício não apresenta quaisquer vestígios estruturais de intervenções anteriores ao século XVIII, exceção feita ao arranque de uma escada em caracol, de evidente cronologia antiga”.
Ainda de acordo com o historiador Luís Urbano Afonso, a Igreja da Misericórdia foi renovada pelo bispo D. Álvaro Abranches de Noronha, que simultaneamente exerceu o episcopado e a provedoria da Santa Casa da Misericórdia de Leiria, de 1697 a 1745. Este edifício retangular tem uma única nave e uma capela-mor ampla, com uma pequena sacristia a norte. Classificada como “arquitetura portuguesa de Estilo Chão”, foi construída, pelo menos entre 1717 e 1722, sob a supervisão do mestre de obras Francisco Gomes.
Para além da Igreja da Misericórdia, também a Casa dos Pintores integra o Centro de Diálogo Intercultural de Leiria e deve o seu nome ao elevado número de artistas que retrataram a sua fachada, uma peça arquitetónica histórica de destaque que sobressai da malha urbana medieval, uma vez que representa o estilo de habitação mais antigo no coração histórico de Leiria.
A Herança Judaica
Ao que tudo indica, o legado judaico mais relevante passa pela edição da obra “Almanaque Perpétuo”, de Abrão Zacuto, que teve fortes consequências e foi impresso na tipografia da família judaica Ortas, em Leiria, em 1496.
Segundo Luís Urbano Afonso, a palavra “almanaque” tem uma origem incerta, sugerindo ser um termo pseudo-árabe, desenvolvido na Península Ibérica. Desde o final da Idade Média, independentemente da sua origem, o termo tem sido associado a um calendário com tabelas anuais e permanentes, relacionadas com eventos astronómicos significativos, como fases da lua, equinócios, solstícios e eclipses. Na época em que o “Almanaque Perpétuo” foi publicado em Leiria, o seu principal interesse “residia nas tabelas (ou ‘tábuas’) que apresentavam os valores do ‘lugar do sol’ ao longo dos diferentes dias do ano, a partir do anoraiz de 1473. Estes elementos eram úteis não só para a astrologia, mas também para a medicina”. Além disso, o almanaque leiriense incluía uma tabela de conversão que possibilitava a transformação desses valores, originalmente “apresentados numa lógica zodiacal, em valores normalizados com a ‘declinação do sol’, sem os quais não era possível calcular corretamente a latitude de um lugar”.
Abraão Zacuto teve um impacto significativo em Portugal, especialmente na vida de Mestre José Vizinho, um astrólogo e médico judeu que fazia parte da corte portuguesa. Este desempenhou um papel crucial no aprimoramento dos conhecimentos científicos necessários para as viagens oceânicas e conduziu trabalhos de campo na Costa da Guiné, dedicando-se a determinar a latitude desses locais ao observar a “altura” do sol ao longo de vários dias. “Não por acaso, foi precisamente José Vizinho quem preparou a edição do ‘Almanaque Perpétuo’”.
Editado em Leiria, em 1496, este livro é uma “compilação de tabelas onde constam as efemérides de vários astros, acompanhadas pelas instruções (ou “cânones”) para as utilizar”. Desta obra foram impressas duas versões: uma com os cânones em latim e outra com os cânones em castelhano, mantendo-se em ambas as tabelas numéricas com os títulos em latim.
Centro de Diálogo Intercultural de Leiria: Casa dos Pintores. Rua Acácio de Paiva, nº 2. 2400 076 Leiria Igreja da Misericórdia. Rua Miguel Bombarda, nº 15. 2400 190 Leiria Tel.: 244 839 628 E-mail: cdil@cm-leiria.pt |