Há palavras que explicam melhor um país do que muitos tratados. “Cai a geada” é uma delas. Não se diz que surge, nem que aparece. Diz-se que cai, como se fosse um gesto do céu, inevitável e silencioso, que cobre o chão e suspende o tempo.
A geada forma-se quando o ar frio e seco faz descer a temperatura das superfícies abaixo do ponto de congelação da água. O vapor existente na atmosfera condensa-se e solidifica em minúsculos cristais de gelo, que se depositam sobre a erva, as folhas, os telhados ou os automóveis. O fenómeno ocorre, sobretudo, em noites limpas e sem vento, quando o calor acumulado durante o dia se dissipa rapidamente e o solo arrefece.
É um processo físico simples, mas que conserva algo de poético: a madrugada desperta coberta por uma película de vidro que brilha antes de desaparecer. Congela o rumor da terra, apaga os rastos da noite e devolve às coisas uma pureza provisória. No Norte e no Interior, a geada é memória antiga. Cai sobre os lameiros transmontanos da Terra Fria, nas vinhas do Douro e nos pomares da Beira Alta. Os agricultores aprendem a lê-la como sinal e aviso. “Cose” as couves, protege as sementes, adormece as ervas e anuncia a claridade que se seguirá. A paisagem parece imóvel, mas o ciclo continua, disfarçado de silêncio.
Em Trás-os-Montes, diz-se que a geada “lava o mundo”. Nas aldeias da Beira, é recebida com a mesma naturalidade com que se fala do tempo ou da colheita. Nas manhãs de inverno, o brilho no chão é conversa certa nas feiras e nos cafés, prova de que o frio chegou “como deve ser”. A luz de dezembro multiplica o efeito. Transforma o gelo em prata e as folhas secas em espelhos. Os telhados fumegam, os carros tardam a arrancar e o fôlego transforma-se em vapor.
Tudo o que se move fá-lo com cuidado, como se o mundo tivesse sido polido durante a noite. A geada é uma forma de pausa. Ensina a olhar devagar, a esperar o degelo, a perceber o valor da lentidão. Talvez por isso pertença tanto à memória rural como ao imaginário de quem vive longe da terra. É o contrário do ruído, uma beleza que não pede atenção, apenas tempo. Quando o sol enfim se levanta e a geada começa a desaparecer, o campo recupera cor e som.
Fica a marca do que se viu e se ouviu antes. Aquele breve momento em que o país inteiro pareceu respirar ao mesmo ritmo. A geada “cai” e, por instantes, tudo se detém.

