BARCELOS, O CAMINHO FAZ PARTE DA NOSSA IDENTIDADE

BARCELOS, O CAMINHO FAZ PARTE DA NOSSA IDENTIDADE

O Caminho Português de Santiago guarda as memórias, devoções e vivências daqueles que, ao longo dos tempos, rumaram a Compostela, marcando, e deixando-se marcar pela cultura e tradições das comunidades. Barcelos é um dos territórios nacionais com mais tradição jacobeia, para o qual muito contribuiu a construção da Ponte Medieval, no século XIV, que exponenciou a sua posição em termos de confluência de peregrinos.

Barcelos é, por direito próprio, o epicentro do caminho português de Santiago. É um território com forte tradição nesta peregrinação, corporizada nas freguesias com sagração a Santiago; na Lenda do Galo, uma das principais e mais antigas lendas do caminho, retratando o Milagre de Santiago em que o Apóstolo salva o peregrino da forca, depois de um galo assado se levantar para cantar a inocência do peregrino; e num centro histórico, cuja evolução se encontra intrinsecamente ligada a esta peregrinação. No concelho, despontam santuários, igrejas, pontes, lugares e cruzeiros que testemunham séculos de vivência com os peregrinos. Um espaço “alma” do caminho, onde valores como a hospitalidade e a multiculturalidade são atributos que caracterizam as gentes e diferenciam este itinerário pela história, lendas, memória e património.

O território barcelense possui cinco albergues de peregrinos, zonas de descanso e parque do peregrino, dois helps points (cidade), bênção diária dos peregrinos na Igreja de Santo António (cidade), dezenas de alojamentos especializados no apoio ao peregrino e uma dinâmica cultural em prol de um caminho sem paralelo (www.cm-barcelos.pt/visitar).

A peregrinação tem em Barcelos duas etapas: a icónica que liga S. Pedro de Rates a Barcelos e a ligação de Barcelos a Ponte de Lima. Um itinerário onde a hospitalidade se faz sentir, a paisagem encanta, e o património faz-nos mergulhar na história, como em nenhum outro caminho.

UM TERRITÓRIO MARCADO PELA LIGAÇÃO AO CAMINHO DE SANTIAGO

Esta rota leva os peregrinos às relíquias de um dos discípulos mais próximos de Cristo, que desde o começo fazia parte do núcleo mais íntimo, juntamente com Pedro e João. Ao longo da história, o Caminho Português de Santiago tem sido percorrido por milhares de peregrinos vindos de todas as partes do mundo, caminho de nobres e plebeus, por onde terá passado também a Rainha Santa Isabel, duas vezes; o rei D. Manuel I; o clérigo Confalonieri, secretariando o Patriarca de Jerusalém Fabio Biondo de Montalto, entre outros. A devoção a São Tiago tem forte expressão em Portugal, nomeadamente no Norte. No concelho de Barcelos, são dez as paróquias que têm por Orago São Tiago: Couto, Carapeços, Aldreu, Vila Seca, Cossourado, Cambeses, Sequeade, Encourados, Feitos e Creixomil. O território é um museu vivo do Caminho de Santiago que apraz descobrir. No concelho, há itinerários que, ao longo da Idade Média, registaram um maior movimento como foi o caso da via que ligava o Porto a Barcelos, o então designado “Caminho do Porto”, atualmente Caminho Português de Santiago Central, seguindo na direção Ponte de Lima, pela Ponte das Tábuas, Paredes de Coura e Valença, antes de entrar na vizinha Galiza. Este é considerado o eixo capital do Caminho em Portugal.

Todavia, existem vestígios patrimoniais de outras variantes do Caminho que cruzam o território do concelho como são exemplo: o Caminho da Costa; o Caminho da Rainha Santa Isabel; e outros que atravessavam o concelho, entre os quais se destaca o que entrava por Cambeses, seguia por Areias de Vilar, Manhente e Ponte de Anhel. Os cristãos peregrinavam, percorriam as mais variadas terras e levavam as notícias das suas, espalhando aos quatro ventos as maravilhas que tinham visto ou ouvido falar. A ressurreição do galo e o milagre do enforcado eram temas conhecidos na Europa, mas é em Barcelos que se enraíza a Lenda do Galo, numa versão muito próxima daquela que nascera em Santo Domingo de la Calzada, na qual são também referenciados dois peregrinos a caminho de Santiago de Compostela, pai e filho.

Face ao posicionamento geográfico de Barcelos, naquele tempo, e da centralidade comercial e social que possuía, podemos afirmar que foram os peregrinos, viajantes e mercadores que trouxeram a lenda a Barcelos, porque ontem, tal como hoje, o Caminho de Santiago era e é uma autoestrada cultural e uma realidade intrínseca ao território. Este contexto justifica a cultura jacobeia das gentes de Barcelos, na medida em que o caminho faz parte da identidade cultural local. Os peregrinos fazem parte do quotidiano desta comunidade há muitos séculos. Aliás, esta realidade estende-se aos territórios subsequentes de Ponte de Lima, Paredes de Coura e Valença.

A ICONOGRAFIA DO CRUZEIRO DO GALO E O MILAGRE DE SANTIAGO

O Cruzeiro do Senhor do Galo é uma estrutura talhada em granito da região, cuja representação iconográfica lavra a lenda do Galo em relevo, aquilo que alguns autores designam por um autêntico livro de pedra, de espírito eminentemente medieval.

Carlos Alberto F. de Almeida (1990, p. 97) destaca a correta descrição iconográfica que o autor oitocentista Amaral Ribeiro deixou deste cruzeiro, na face «outrora virada à forca» vemos “lavrada, em relevo, a figura de um homem pendente de uma corda bamba, amarrada ao pescoço” e, por baixo, outro que sustém os pés do condenado, cujas caraterísticas se associa a um peregrino, que pelas insígnias que apresenta, com a sacola, o bordão e a cabaça, será São Tiago. E, como não podia deixar de ser, encontra-se presente o galo como uma das figuras centrais do Cruzeiro do Senhor do Galo. Aparece numa posição altiva, a cantar, com o pescoço esticado e o bico a apontar para cima. O conjunto é encimado pela figura de Cristo. A simbologia do galo já na antiguidade tinha lugar de destaque. Entre os romanos, o galo era consagrado a Marte pelo seu ar corajoso, capaz de ir à luta. É referido no Evangelho, na passagem em que Pedro nega o Mestre três vezes.

O Cruzeiro, na face oposta, continua a marcar vivências religiosas, além da repetição da imagem de Cristo, e destaca-se o conjunto formado pela imagem da Virgem e de outra que se assemelha a São Bento, cujo culto está muito difundido no concelho; estão ainda representados numa face o sol, a lua e na outra face um dragão. Conforme está descrito em Carlos Alberto F. de Almeida (1990, p. 97), “São as tradicionais figuras do Sol e da Lua ao lado de Cristo para significar que ele é o Senhor do Universo. A representação do dragão, símbolo do demónio vencido pela redenção de Cristo.” Conforme aponta este autor, a Lenda retratada na iconografia do cruzeiro apresenta dois milagres com origens e diferentes difusões. O primeiro é a curiosa suspensão do enforcado e o segundo um galo assado que se levanta e canta. A ocultação das peças de prata é um tema de origem bíblica. Há fontes que apontam o milagre da suspensão do enforcado atribuído a diferentes santos e terá acontecido em tantos outros locais, sendo a atribuição a São Tiago a mais frequente. No Codex Calixtinus, já se refere que este terá acontecido em Toulouse, no século XI, no ano de 1090, com um peregrino alemão. Por outro lado, a “ressurreição” do galo assado, que se ergue para cantar anunciando a “verdade”, tem uma origem mais antiga, aparecendo nos Evangelhos Apócrifos da época paleocristã.

Nos inícios do século XV, no ano de 1418, em Santo Domingo de la Calzada retrata-se uma epifania semelhante à de Barcelos, onde à miraculosa suspensão do peregrino enforcado, se junta a ressurreição do galo que canta perante o juiz. Esta será a versão que a Época Moderna divulga, que passa de “boca em boca”, “literatura de cordel” e chega até Barcelos, onde a tradição aliada à iconografia religiosa do cruzeiro se conservou e fixou.

E, chegando até aqui, estabelecemos um galo cuja história nos mostra que a sua ligação ao território é muito anterior à própria figura em barro, o que nos leva a falar de um galo que depois de assado cantou e teve ampla descendência, disseminando-se por todos os cantos do mundo, ostentando as insígnias de símbolo de uma comunidade, de um país e de uma das mais importantes peregrinações do mundo ocidental. Atualmente, o Cruzeiro do Senhor do Galo é o mais icónico e representativo argumento patrimonial do Caminho Português de Santiago e ponto obrigatório de passagem para os peregrinos.

O galo assado descrito na Lenda é recriado na gastronomia, através da iguaria “Galo Assado à moda de Barcelos”, que encerra em si toda a simbologia e espírito do Caminho e da devoção a Santiago. Mais que uma iguaria, é um cerimonial dedicado ao Caminho, um momento único que marca a experiência de peregrinação e que os peregrinos têm difundido pelo mundo.

ESTE É O CAMINHO

O caminho Português de Santiago, designado de Central, é o caminho com mais tradição de peregrinação em Portugal e a partir do qual o fenómeno ganhou expressão. Com forte cadência a partir do Porto, mas que pode iniciar na Igreja de Santiago em Lisboa, é um percurso marcado pela história, pelas lendas e pela memória impressa no património onde se destacam “Monumentos-Marca” do caminho como a Sé Catedral do Porto, o Mosteiro de Leça do Balio, o Mosteiro de Vairão, a Ponte de S. Miguel de Arcos, a Ponte de Zameiro, a Igreja de S. Pedro de Rates, a Pedra Furada, a Capela da Senhora da Ponte, a Ponte Peregrinos de Santiago, o Centro Histórico de Barcelos, a Ponte de Tábuas, o Santuário da Senhora Aparecida, a Igreja de S. Martinho de Balugães, a Ponte Romana e Centro Histórico de Ponte de Lima, a Ponte Romana de Rubiães, a Igreja de S. Pedro Rubiães, a Capela de S. Bento da Porta Aberta e a Muralha e Centro Histórico de Valença, entre tantos outros que nos fazem sentir atores da história desta peregrinação.

Este é o caminho!

Bibliografia: Almeida, Carlos Alberto Ferreira, “ Cidades e vilas de Portugal – Barcelos”, Lisboa, Editorial Presença, LDA, 1990.

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