“A Capital do Marranismo”

“A Capital do Marranismo”

Povoado muito antigo, Carção é citada desde os primeiros tempos da nacionalidade (1187). Encontra-se a cerca de 12 quilómetros da sede do concelho, Vimioso.

A sua maior importância e desenvolvimento deu-se após o século XV, quando muitos descendentes de judeus se refugiaram na localidade e outras aldeias raianas (Argozelo, Vimioso, Campo de Víboras), dedicando-se sobretudo ao curtimento de peles, indústrias de cola e comércio. Seus habitantes sempre tiveram arte e engenho para fazer face ao isolamento da terra e sair a mercadejar por toda a parte. Há cerca de um século, o douto Abade de Baçal refere: “Percorrem o distrito de Bragança com venda ambulante de bacalhau, arroz, azeite e outros géneros, comprando, ao mesmo tempo, peles ovinas, bovinas e caprinas (…). Encontram-se estabelecidos nos povoados principais, aldeias ricas e férteis do reino, colónias e até do estrangeiro, onde entram à formiga, sem eira nem beira, nem ramo de figueira, apenas com dois centos de sardinhas em cima de um burro podre e dentro de uma dúzia de anos chegam a preponderar pela fortuna adquirida no negócio.” Muito semelhante é o retrato feito por outros historiadores, literatos e etnólogos que escreveram sobre o génio mercantil e empreendedor das gentes de Carção. E todos associam esta qualidade à sua herança judaica. Leite de Vasconcelos, por exemplo, usou estas palavras: “A gente de estirpe judaica destas últimas povoações (Carção e Argozelo) vivia, até há pouco, sobretudo do comércio e da indústria dos curtumes.”

O que também surpreende neste povoado, é a forte convicção religiosa na Lei de Moisés, conseguindo manter essa herança judaica, em segredo, por mais de 400 anos, após serem obrigados a converterem-se ao cristianismo.

Foi uma aldeia muito fustigada pela Inquisição, desde metade do século XVII, sabendo-se que o Tribunal do Santo Ofício abriu processos a 228 moradores, quase todos eles acusados de heresia (respeitar o sábado, jejuar no Kipur, participar em práticas judaicas mortuárias, missas secas…) muito dos quais acabando por ser queimados nas fogueiras dos Autos-de-Fé realizados no Terreiro de São Miguel, em Coimbra.

O período, provavelmente o mais negro da comunidade, foi entre 1691 e 1701, considerando-se um massacre da comunidade, com a prisão de pelo menos 130 cristãos-novos, muitos dos quais mortos. Houve Autos- -de-Fé em que metade dos penitenciados eram desta localidade, como sucedeu no de 17-10-1694, onde 25 dos 56 penitenciados eram de Carção. Também a 25-11-1696, dos 88 penitenciados, 43 eram de Carção, dos quais 12 foram relaxados em carne. Este ataque a Carção foi de tal forma violento, que o Padre António Vieira (1608-1697) refere que esta devia ser uma das comunidades quase exclusivamente constituídas por cristãos- -novos (descendentes dos judeus convertidos à força em 1497). Contudo, apesar desta tremenda devastação, a comunidade revelou uma extraordinária capacidade de resistência à Inquisição, chegando a roubar, das paredes da igreja matriz, os sambenitos dos condenados à morte pela Inquisição (em 1737), que este tribunal ali mandou pendurar para exemplo. Sabe-se que, no século XVIII, chegaram a estar expostos 35 sambenitos.

Já no século XIX, as autoridades católicas davam conta de como a pratica judaica florescia, após abolição da inquisição, como é testemunhado pelo pároco de Carção em carta de 2-6-1852, para o bispo de Bragança: “Neste povo grassa desde tempo imemorial uma seita que em tempo da Inquisição era muito oculto, mas de 34 (1834) a esta parte é isso muito divulgado, quero dizer que não se escondem os sectários como outrora; assim há muita gente, que pelo menos in confuso sabem disso… O erro é a seita, ou Lei de Moisés.”

Nesta identidade religiosa marrana que foi evoluindo ao longo dos séculos, escondida em virtude da perseguição, há a memória e a descrição de cerimónias religiosas que celebravam em casas particulares e na capela de Santo Estêvão (fundada em 1661 por nove cristãos-novos) a que davam o nome de missas secas, ou de como celebravam a festa do Kipur com uma romagem para os vinhedos (testemunhado ainda pelo etnólogo Abade de Baçal nos anos 20 dos Século XX, bem como outros cultos). Outros investigadores também testemunharam algumas dessas vivências religiosas, como Leite Vasconcelos, Samuel Schwartz ou Amílcar Paulo.

Na aldeia, a população ainda há poucos anos se dividia entre lavradores e judeus e entre o bairro de Cima e a Praça.

Passados 500 anos sobre a expulsão e posteriormente conversão forçada, continuam a ser muitos os vestígios desta comunidade.

A população constrói o Museu Marrano, em homenagem a toda a comunidade, onde podemos ver alguma dessa herança, tais como vários cruciformes, passeriformes, o Leão de Judá, o memorial às 228 pessoas vítimas da inquisição, alguma orações ditas no Século XVII, o Agus Dei com símbolos judaicos numa das faces, considerada por muitos a “Joia do Marranismo em Portugal”. Muito recentemente, no centro da Praça, foi erguido também um monumento, uma grande Menorah para assinalar essa forte e importante presença judaica. Também no outro grande largo da aldeia, Fontes, junto a uma das fontes, podemos verificar uma grande lápide, com a condenação de Francisco Mendes por matar o juiz e pelo pouco respeito aos sacramentos, destruindo uma imagem de Cristo crucificado (1651). Se por coincidência ou propósito, a mesma fonte, no centro do arco, assinala a data do início do período mais negro da história da localidade: 1691.

A materializar esta herança, os órgãos próprios de governo da freguesia decidiram adotar como símbolo maior da sua bandeira, brasão, uma Menorah, assumindo a sua identidade marrana.

Devido a alguns dos factos históricos e físicos aqui descritos, hoje, Carção é tida como “A Capital do Marranismo” e a comprová-lo está o livro escrito por António J. Andrade e M.ª Fernanda Guimarães, 2008.

A comunidade marrana do concelho de Vimioso, estende-se a outras localidades vizinhas, nomeadamente Argozelo (também com grande tradição na indústria de curtumes e comércio), Vimioso e Campo de Víboras (havendo relatos de algumas missas secas, como aconteceu na capela de Santo Estêvão, em Carção).

*Fotografias: Paulo Lopes

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